A velha locomotiva a vapor rangia em seu suplício de aço a que era novamente submetida. Homens chegaram e a amarraram com grande pressa em cabos de aço e, aos gritos, corriam freneticamente pra lá e pra cá, alguns com ferramentas e mãos sujas da imundície acumulada em sua superfície metálica, outros gritavam ordens.
A locomotiva sofria. Estava certa de que esse seria seu fim. Sabia o destino que tiveram suas irmãs. Lembrava com pavor do brilho do maçarico cortando muitas outras locomotivas, carros e também vagões. Agora tinha certeza de que teria semelhante final.
Despiram-na de suas braçagens. Retiraram várias de suas peças e as colocaram em caixas. Um grande caminhão plataforma se aproximou.
Era chegada a hora. Os rangidos de seu metal cansado e enferrujado demonstravam sua agonia. Não tinha como lutar. Há muito tempo fora colocada em um pedestal, que se tornou seu leito de morte. E lá ela morreu, completamente só.
Naquele momento, quando foi içada para cima da carreta, lembrou de todos esses momentos, desde deu auge na ferrovia até seu sucateamento. Lembrou de seu maquinista, senhor risonho, sempre muito cuidadoso. Lembrou também das belas paisagens por onde passava, das pessoas que carregava, do sorriso das crianças... Lembrou ainda do pesar dos funcionários da ferrovia quando foi retirada do tráfego. Sua memória refez a linha do tempo, acreditava ela, pela última vez.
Levaram-na. O caminhão que a transportava andou durante todo dia. Já era de tardinha quando parou. Estavam em frente a uma antiga estação.
Suada com a brisa fria da tarde, foi retirada de cima da plataforma do caminhão e colocada com cuidado nos trilhos.
Surpresa, a locomotiva viu ao seu redor outras locomotivas a vapor. E grande parte delas estava em ótimo estado e seus metais rebrilhavam ao sol da tarde. Mais surpresa ficou ainda ao ver na sua frente mais adiante, uma grande vaporosa acesa, arfando, chegando perto. A máquina que se aproximava cumprimentou-a com um vigoroso apito e parou a alguns metros.
Que lugar era aquele onde máquinas como ela ainda funcionavam? Viu os mesmos homens que retiraram suas braçagens e peças cercando-a. Sentiu uma pontada aguda. Estavam remontando os componentes.
Durante vários dias teve sua chaparia trocada, partes que haviam sido roubadas foram repostas. Seus tubos, fornalha e caldeira foram consertados e, por último, foi repintada.
Em um ato quase solene foi reacesa. O fogo voltou a arder em sua fornalha. Sentia a água e o vapor circularem em seu interior. Seu compressor de ar chiava, como uma respiração profunda.
A locomotiva moveu-se por alguns metros. Sentiu golfadas de vapor quente invadirem seus cilindros. Quase se esquecera de como era movimentar-se.
A mão suave do maquinista foi a extensão de sua vontade. O apito ecoou longo e lamentoso nos barracões e na fileira de seringueiras mais adiante, mas expressava sua imensa alegria e exaltava seu renascimento.
O apito desencadeou vivas e palmas dos presentes que a cercavam. Um dos homens saiu do meio do grupo, com uma reluzente placa de metal nas mãos. Em dourado, com fundo vermelho, estavam impressas quatro letras. A placa foi fixada na lateral de sua cabine.
A grande Mikado que estava na sua frente recuou ruidosamente. Retornou trazendo três carros de madeira, lindíssimos em seus detalhes. Depois do desengate, seguiu para um desvio próximo.
Dócil ao comando do maquinista, a locomotiva engatou os carros e os tracionou por pelo menos um quilômetro. Voltaram à estação em seguida. Os carros desacoplados foram novamente manobrados pela locomotiva que aguardava no desvio.
Novamente a euforia tomou conta do grupo que observava atentamente. Essa mesma euforia também invadiu a renovada locomotiva. Mais adiante avistou um letreiro. Agora entendia o que aquelas quatro letras da placa em sua cabine significavam. Agora sabia o nome de seu destino. No letreiro estava escrito: “ABPF – Associação Brasileira de Preservação Ferroviária”.
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