A grande locomotiva a diesel aguardava licença frente a uma enorme composição cargueira. Seu tamanho descomunal e porte imponente sempre chamam a atenção por onde ela passa e seus maquinistas sentem muito orgulho em seu posto de comando.
Enquanto aguardavam para continuar viagem, várias pessoas vieram para tirar fotos ou simplesmente olhar o trem. Um pequeno grupo se formou ao redor da máquina.
A locomotiva, feliz pelo assédio e curiosidade das pessoas, roncava seu poderoso motor mais alto. O maquinista até acionou a buzina para alegria dos presentes.
Depois que o movimento de curiosos cessou, o motor da máquina foi desligado e ela passou a estudar o lugar.
Um tanto afastada, estava a antiga estação da cidade. Praticamente em ruínas, estava tomada pelo matagal. Junto à sua plataforma, dois carros de aço carbono e uma velha locomotiva a vapor agonizavam sob a ação cruel do tempo e o abandono do homem.
Condoída, a máquina a diesel analisou aquela situação deplorável. A velha locomotiva estava enferrujada e toda cortada. Havia sido tão saqueada que seu tênder já não existia mais. Dos carros, só restava a carcaça corroída e resquícios da pintura azul e branca. Da estação, restaram tão somente as paredes, vagas lembranças dos tempos áureos da ferrovia.
A locomotiva a diesel agora contemplava aquela que outrora era soberana absoluta sobre os trilhos. As duas máquinas se encararam por um breve momento.
A moderna locomotiva foi tomada por um temor respeitoso, frente àquela que fora a sua antecessora. Com talvez o triplo do tamanho da vaporosa, era tão jovem que nada sabia sobre o passado ferroviário. O pouco que sabia, vinha de histórias contadas na sua cabine, ou à sua sombra em dias como hoje, onde esperava para seguir viagem.
Sentiu-se uma criança. Apesar de toda a sua potência e tecnologia, viu-se tão frágil e tão pequena, frente àquela vaporeira que, apesar de seu estado deplorável de descaso e destruição, ainda mantinha sua majestade, da qual havia sido há tanto tempo destituída.
Nunca vira uma Maria Fumaça funcionando, constatou. Nem carros como aqueles rodando. Fora construída muito depois da queda do transporte ferroviário de passageiros. Começou a se perguntar porquê... Será que um dia ela, hoje tão aclamada, teria fim igual ao daquela locomotiva? Seria desprezada e deixada para morrer em uma dessas filas de morte que já tinha ouvido falar?
A grande diesel-elétrica entristeceu. Começou a perceber a face sombria da ferrovia. Baixou os olhos e começou a fitar os trilhos. Próximo a eles, sob a sombra de uma pequena árvore, havia um senhor sentado em um banco de pedra, com os olhos voltados para a velha estação.
Curvado sob o peso do tempo, o ancião segurava a bengala com firmeza, perdido em seus pensamentos. Estava de costas para a locomotiva a diesel.
Quando o senhor voltou-lhe a face, a locomotiva pôde ver seus olhos. Estavam marejados, e ela percebeu que carregavam a mesma tristeza que ela vira na velha vaporosa. Por um momento, ele olhou para a locomotiva a diesel. A dor existente naquele olhar cortou-lhe o sentimento. Ela choraria, se tivesse tal capacidade.
Novamente a máquina começou a encarar os trilhos. A dor e a amargura feriram-lhe mais que fogo. Compreendeu a cumplicidade existente entre o senhor, a locomotiva a vapor e seus carros. Foram separados pelo descaso e pela modernidade. Será que um dia seu maquinista choraria por ela carcomida pela ferrugem e largada em um cemitério de vagões?
Nesse momento, chegou a licença para partir. Seu motor foi novamente ligado, mas ele já não roncava tão alto. A máquina já não tinha o mesmo entusiasmo de antes. A revolta agora circulava juntamente com o diesel em suas entranhas. Havia sentido o gosto amargo da negligência e ele não seria esquecido tão cedo.
Soou a buzina estridente. Estavam partindo. Lançou um último olhar para a velha locomotiva, expressando toda sua condolência. A vaporosa aquiesceu. O ancião contemplou rapidamente sua passagem, com os olhos ainda vermelhos e úmidos. Como ela queria que aquele homem visse sua tristeza, embora isso não devolveria a ele tudo o que lhe fora tirado. Ela não podia fazer nada.
Daiane Kowaleski Miranda, “Daiane Fumaça”
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