sábado, 30 de abril de 2011

A Maria Fumaça


Já convivo com os trens há alguns anos. Quase que diariamente ouço sua melodiosa canção de ferro e presencio sua impertinência ao atravessar as ruas movimentadas. Aqui, os trens cargueiros tracionados por locomotivas a diesel já fazem parte do cotidiano da cidade.
            Nunca havia visto de perto uma locomotiva a vapor funcionando. Vi somente através de filmes, documentários, novelas... E mesmo assim já achava uma maravilha da engenhosidade humana.
            Na minha primeira viagem a São Paulo, tive a oportunidade de ver uma Maria Fumaça em funcionamento pela primeira vez. E como eu queria que aquele momento não acabasse mais.
            Cheguei pela manhã na estação e, ao longe, a espessa coluna de fumaça indicava a presença da locomotiva. Mesmo distante, já conseguia ouvir sua respiração chiada.
            E sem demora ela veio. Surgiu do lenheiro de forma quase sobrenatural, precedida pela névoa formada pelo vapor expelido dos cilindros. O chiado rouco da exaustão do vapor aumentou de intensidade. Ela veio devagar, balançando suavemente.
            Ao chegar na estação, apitou vigorosamente. Seu apito parecia um grito, lamentoso e prolongado. O vapor e a fumaça envolviam-na como um manto. Tive um calafrio. A locomotiva parecia ter saído de outro mundo, parecia transcendental. Sua presença era imponente, e imprimia um certo respeito. Começou a se deslocar mais lentamente. Suas braçagens moviam-se de forma sincronizada, numa coreografia perfeita. Parecia ter uma grande leveza, tal o modo como deslizava sobre os trilhos.
            Todos nós que aguardávamos na estação paramos para apreciar a passagem daquela máquina maravilhosa com alma de fogo e ficamos boquiabertos com a cena presenciada. É praticamente impossível não ser tocado por tal visão. Não tem como ficar inerte diante do espetáculo do funcionamento de uma Maria Fumaça. A gente simplesmente é invadido por uma sensação estranha, parecida com uma forte saudade...Engraçado sentir saudade de uma época que nem vivenciei...
            Senti saudades de locomotivas como essa, que nunca tinha visto rodar até aquele momento. Senti falta de estações, pelas quais nunca passei. Senti saudades do som do sino, avisando a partida da composição, do apito do chefe de trem, seguido do apito choroso da locomotiva. Senti saudade do cheiro úmido do vapor e da lenha, do ranger dos metais, do estalar dos dormentes, do som resfolegante dos cilindros...
            Senti falta da música composta pelos rodeiros e trilhos, do balançar dos carros, das partidas e chegadas, dos acenos nas janelas, do movimento nas plataformas...
            Perdemos uma época áurea, mas nesse dia em que fiquei frente a frente com essa locomotiva a vapor, percebi que nem tudo está perdido, e que nem todo material rodante antigo está morto. Pelo contrário. A vontade e perseverança de poucos fez uma enorme diferença e manteve acesa a chama da preservação ferroviária, praticamente extinta do nosso país rodoviarista.

Daiane Kowaleski Miranda, “Daiane Fumaça”

Um comentário:

  1. Esta história me faz sentir saudades do meus tempos de menino, quando eu matava aula para ir a gare da estação de Pelotas e ficar admirando o vai-e-vem das locomotivas no pátio de manobras e quando aportavam nas estações.

    Guardo vivos na lembrança o chiado do vapor, o apito, o tilintar do sino, o apito do chefe do trem e o tich tich tich tich tchac tchic tchac tchac das locomotiva acelerando compassadamente e se afastando lentamente da estação.

    Quando cheguei ao Rio de Janeiro, nos idos da década de 1960 até os anos 80, matava a saudade das maria-fumaça viajando da estação da Leopoldina a Mangaratiba, e de Angra dos Reis a Volta Redonda. Hoje, o que me resta é esta lembrança, que apesar de agradável, me deixa triste por terem destruído a maioria das ferrovias que transportavam passageiros em nosso país.

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