segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Os Trilhos de Paranapiacaba

Lugar lindo é a vila de Paranapiacaba, São Paulo. No meio das montanhas, tem ares de cidade interiorana, com um toque de maresia. Suas ruas de pedra e casas antigas nos transportam para outros tempos. Seu centro é um pátio ferroviário de grande movimento.
As instalações da 5ª Machina dos Novos Planos Inclinados abrigam um pequeno museu ferroviário e material rodante antigo. No pátio, existem vagões em ruína, carros e guindastes.
Andando pelo antigo pátio, junto aos galpões do antigo sistema funicular, notei que ainda existiam trilhos, mais adiante. Só percebi sua presença devido ao reflexo. Senão, jamais os veria ali, no meio do matagal. Estavam cobertos de orvalho, e um musgo espesso tomava-os quase por completo.
Veio a pesada neblina. Fiquei ali junto àqueles trilhos, que lutavam pra não sucumbir, Abaixei-me para ver melhor. Vi que se tratava de um AMV. Procurei as agulhas. Nada. Estavam enterradas. Mais adiante avistei o coração, sufocado pelas plantas. Toquei-o. Pude ouvir sua voz metálica, contando histórias de outros tempos. Histórias felizes e tristes, curiosas e peculiares. Histórias de sacrifício e trabalho duro. Histórias de muitas vidas. Mas aqueles trilhos haviam sido abandonados. Abandonados e esquecidos. E questionavam-se por que. Queriam ser úteis novamente, servir a máquinas e a pessoas. Estavam ali, morrendo lentamente, devorados pela ferrugem e pela maresia e suas súplicas não eram ouvidas. Resignados, viam os dias passar, lentamente...
Eu não podia fazer nada. O coração da chave sob minha mão ainda vivia. Mas não sabia até quando. Pouco a pouco, a relva e o solo úmido tomam os trilhos, centímetro a centímetro.
Me afastei dali. A neblina estava ainda mais espessa. Atravessei a passarela acima do atual pátio. Iria conhecer outros cantos do vilarejo.
Mais adiante, outra cena de cortar a alma. O Estrela,que jaz morto no canto do antigo pátio. A ferrugem destruiu-o por completo. A carcaça vazia e carcomida só possui lembranças, e agoniza jogada na linha. A névoa envolvia completamente a composição, fazendo-a parecer um fantasma de metal.
Um grupo de jovens se aproximou. “— Mas que sucata velha!— ” falou um deles. Tiraram algumas fotos e se retiraram. Fiquei espantada com o total desrespeito àquela composição extinta, que levou tanta gente e tantas coisas, e que não teve sequer um fim respeitável à memória de seu serviço. E que agora, calada, faz as vezes de atração dos horrores, para felicidade dos turistas e indignação dos ferroviários.
Retirei-me. Não conseguia mais olhar. Mais afastada, só avistava a silhueta escura do Estrela, erguendo-se solitário em meio ao nevoeiro. Sentei em uma parte mais alta, nas escadas de uma antiga casa. Contemplei mais uma vez os prédios do sistema funicular ao longe. Mesmo distante, podia ouvir os sussurros do coração do AMV, que ainda pulsava... pulsava...

Situação preocupante da locomotiva 42 de Cruz Alta.

A locomotiva 42 de Cruz Alta é uma locomotiva centenária. Fabricada em 1911, veio da Inglaterra para o Rio Grande do Sul tracionar trens na antiga BGS (Brazil Great Southern), ferrovia que operava entre Itaqui e Barra do Quaraí. Desse modelo, só vieram duas. A 42, que está em Cruz Alta, e a 43 que não se sabe o fim que teve. É uma pequena loco-tanque de rodagem Pacific. Muito bonita. Só que essa máquina, única no país, está deteriorando devido à exposição ao tempo. Está a céu aberto desde que foi colocada como monumento, só que a deterioração e ferrugem estão avançando mais e a cada dia mais rápido.
Locomotiva 42, localizada junto à estação antiga de Cruz Alta

A idéia para o momento, é fazer pelo menos, uma cobertura para protegê-la da ação direta da chuva e de outras intempéries. Se a corrosão continuar avançando, muito em breve ela se tornará irrecuperável. Não queremos que se repita aqui a história da Le Meuse de Novo Hamburgo, que deteriorou tando no seu tempo de exposição como monumento, que não teve mais recuperação, e acabou cortada e vendida como sucata alguns anos atrás. Essa é uma locomotiva importante, tanto pelo fato de ser única, como pelo fato de seu valor histórico à memória ferroviária Rio-grandense. Poucas locomotivas do tempo da VFRGS sobreviveram até hoje. A 42 é uma das poucas restantes.
Essa é apenas uma das partes corroídas da locomotiva

Se conseguirmos uma cobertura para ela, até que se consiga fazer algo mais complexo a respeito, já será importante para a preservação dessa máquina. Se continuar assim, em breve não terá mais recuperação. Vamos evitar a perda de mais um material de importante valor histórico para o nosso estado e tomar medidas para tentar salvar essa bela inglesa de apodrecer ao tempo

Cabine elétrica de Cruz Alta - situação atual

Esses dias, em visita ao pátio ferroviário de Cruz Alta, eis que volto à cabine elétrica. E o que eu vi não foi o esperado. Como vocês viram na postagem anterior da cabine, o painel estava em ordem, ainda que o restante da sala estivesse em ruínas, inclusive o assoalho. Só que dessa vez, o painel também caiu, e está deteriorando.

Painel no chão da cabine

Vamos ver se conseguiremos tomar alguma medida em relação ao painel, para que seja removido de lá, ou se faça algo a respeito, para preservá-lo. Como a cabine não tem telhado, a chuva e a ação do tempo não vão demorar muito para piorar o estado já ruim do painel, visto que esse é todo em madeira.
Nota-se que o painel está deteriorado

Vamos ver se conseguiremos resolver essa questão junto à concessionária ferroviária, à prefeitura e com o Sindicato dos Ferroviários de Cruz Alta.

Esperança


Ela estava lá, inerte. Estava coberta por uma camada de poeira. Sua cor rubro-verde estava desbotada pelo tempo e pelas intempéries. Seus metais enferrujados e cansados estalavam ao calor. Esquecida, seu tênder lhe fazia companhia. 
Perdera o vigor.
Perdera o brilho.
Perdera a força.
Suas braçagens e puxavantes estavam encravados. As rodas estavam desgastadas. Sua fornalha, fria e suja, não sentia o calor do fogo há muitos anos. Seus cilindros, não mais sabiam o que era vapor. Sua chaminé, não mais largava rolos pesados de fumaça e vapor ao céu.
            Sua placa vermelha emoldurada em dourado ostentava ainda sua identidade. O sino de bronze pendia ao sabor do vento, lançando um tilintar suave, como uma canção triste de uma solitária senhora de ferro.
Ela continuava lá...
Gostaria tanto de puxar aqueles carros que estavam ao seu lado, de fazer composições com aquelas locomotivas, suas irmãs, que compartiam do seu existir. Manobras, trecho, passeios, viagens...
Estava em seus devaneios e lembranças de um tempo áureo, quando um toque suave lhe chamou a atenção. Uma mão acarinhava-lhe o metal...
Um par de olhos fitavam-na com uma ternura tão grande. Nunca os vira mas, ao que indicava, eles já a conheciam.
Um suspiro...
O olhar percorria sua caldeira e cabine, para se perder no tênder. A mão, agora segurava firme o tirante da caixa de fumaça.
Sentiu que subia em seu limpa-trilho, para se aconchegar na varanda à frente da placa. Aqueles olhos, agora estavam deitados, fitando-a com carinho. A mão tocou-lhe a placa. Limpou o pó. Os olhos se fecharam lentamente, para logo adormecer.
Uma pequena chama de alegria acendeu-se no interior da cansada vaporosa. Olhava para aquela pequena criatura deitada em seu colo. Sem se importar com sua sujeira e ferrugem ela estava lá. Um esboço de sorriso enfeitava o canto de seus lábios. Dormia tranquilamente, feliz nos braços da velha máquina.
A locomotiva observava. O ser em seu aconchego balbuciou as palavras “eu ainda vou ver você funcionando, vou fazer tudo para tal”.
A vaporosa silenciosamente, sorriu...

segunda-feira, 20 de junho de 2011

A Cabine Elétrica de Cruz Alta


Pra quem não sabe, o pátio ferroviário de Cruz Alta foi o único no estado a ter AMVs (chaves) elétricos no estado do Rio Grande do Sul. Apesar deste sistema ter sido desativado há muito tempo, sua cabine ainda permanece no pátio. Mesmo depois de ter sido incendiada, vandalizada e saqueada, a cabine mantém sua estrutura  e nos dá uma idéia de como era no passado. 

Aparência externa da cabine atualmente

Pesquisando sobre ela juntamente com amigos do Arquivo Histórico Municipal de Cruz Alta, da ABPF e da ALL, descobrimos características singulares, e um sistema de operação único, chamado bloqueio Bertacin.
Esse sistema foi inaugurado pela E. F. Sorocabana  em 1931 dez cabines no trecho São Paulo-Domingos de Morais,e foi  invenção do Eng. Heitor Bertacin; o invento já havia sido submetido a demorados estudos e experiências, que haviam comprovado sua eficiência e segurança. Consistia em um sistema eletro-mecânico com interligação e intertravamento recíproco de chaves,sinais,cancelas e aparelhos de manobra nas cabines, impedindo o acionamento indevido de qualquer elemento. Todo o conjunto era de projeto e construção inteiramente nacionais. Em janeiro de 1936 o Ministro da Viação recomendou a várias estradas de ferro que adotassem de preferência o bloqueio Bertacin, entre as quais a E.F. Central do Brasil, a E.F. Noroeste do Brasil e a Rede de Viação Cearense.

O bloqueio Bertacin é um conjunto de mecanismo elétrico que bloqueia o trem em determinado percurso, dirigido em harmônica relação, pela cabine do trecho em que ele está. As cabines entram em relação entre si para a passagem de um trecho a outro e este serviço com o de pátios é feito com máxima segurança. O manejo das alavancas para acionar as agulhas, discos, ferrolhos, fechaduras e semáforos é mais ou menos o adotado na Europa e América, ou seja, uma agulha aberta para certo desvio, impede, por meio de quadro de travamento, chamado interlocking que venha a franco um sinal ou disco contrário e bem assim, tendo linha livre para um trem, impede que o cabineiro abra um travessão ou desvio correspondente aquela via. As chaves de ponta são munidas de ferrolho e contratrava impedindo que o cabineiro possa mover a alavanca.por outro lado os próprios freios das rodas da locomotiva impedem e travam as alavancas de per si e automaticamente os mesmos aferrolham as agulhas.

A contratrava por sua vez limita-se a aferrolhoar a chave na posição certa, correspondente a cada sinal de estrada, sendo que cada agulha é protegida por um ou mais discos conforme a manobra a se fazer. As cancelas também são aferrolhoadas automaticamente com campainha para avisar o público sendo que este sistema trabalha automaticamente bem como os faróis. Este conjunto só ficará livre depois da passagem do trem. Afinal é o próprio comboio que por si dá licença ou impede o manejo das chaves conforme o caso. As cabinas pois conjugadas desse modo com o bloco mantém o serviço absolutamente seguro no pátio de manobras garantindo uma perfeita entrada ou saída das estações de qualquer trem.

Heitor Bertacin foi casado com Maria Isaura Ribeiro filha do coronel Diogo Martins Ribeiro (1848-1932). Pelo Decreto 13.128/1943 de 05/08/1943 o presidente Getúlio Vargas autorizou Heitor Bertacin a pesquisar dolomita no município de Prainha, São Paulo.
Depois de analisarmos a cabine, apesar do pouco dela que restou, chegamos à conclusão de que ela fugia ao padrão das outras cabines elétricas do país. Não utilizava contrapesos e contatos eletromecânicos, e sim cabos acionados eletricamente. Suas alavancas se localizavam em uma “mesa”, diferente das alavancas convencionais, no chão. O painel, um dos poucos itens que resistiu ao incêndio e ao vandalismo, nos dá uma idéia do “layout” do pátio no passado. Essa cabine, pelo que consta, data de 1944. 
No momento, estamos pesquisando e tentando encontrar referências e fotos desta cabine para que possamos fazer uma reconstrução da sua aparência original e sistema de operação. 


Daiane Kowaleski na mesa de controles

sábado, 30 de abril de 2011

A Menina e o Trem


Escurecia...
A menina pulava corda com os amigos, quando foi chamada pela mãe. Despediu-se da meninada e correu para o portão de casa. Seus pais moravam em uma vila ferroviária, bem próxima à antiga estação, onde ainda funcionava um pequeno museu mantido pelo seu avô, ex-telegrafista da ferrovia.
                Era hora de jantar. A menina estava inquieta. A partir daquele horário, ela ficava atenta aos ruídos da noite. Esperava.
                Depois da refeição, sentou-se no chão da sala com um livro antigo, de capa carcomida. Começou a folhear. Surgiam figuras em preto e branco de locomotivas a vapor, carros, pontes, rotundas, pilhas de carvão, trabalhadores nas oficinas...
                Os olhos da garotinha brilhavam, e sua imaginação se perdia naquelas páginas amareladas. Lembrou-se das histórias contadas pelo seu avô sobre o trabalho árduo, da construção das estradas de ferro, das imponentes máquinas... Ficava horas e horas na estação, ouvindo-o contar. Havia ganho dele também um pequeno ferrorama, que a distraía por longos períodos em sua própria ferrovia imaginária, transportando seus brinquedos pelo chão do quintal.
                De repente, a menina largou o velho livro e saiu correndo. Havia escutado o som que estava esperando. Uma buzina estridente soou ao longe como um grito rouco.
                Na janela do seu quarto, a garotinha estava atenta. O familiar ruído compassado do motor foi aumentando de intensidade. Logo, surgiu um forte clarão no meio das árvores. Ele estava chegando. O coração da menina teimava em bater mais rápido.
                A buzina agoniada cortou novamente o silêncio da noite. O trem cargueiro adentrava na estação e exibia seus contornos à luz da plataforma. A garotinha ficava maravilhada com aquela imensidão de ferro que agora movia-se lentamente, se exibindo pra ela.
                A composição parou. As duas locomotivas que tracionavam o longo trem resfolegavam e bufavam como grandes corcéis de aço e olhos luzentes, prontos pra prosseguir a jornada.
                Da janela da primeira locomotiva, o maquinista acenou para ela, que retribuiu o aceno e mostrou a pequena locomotiva do seu ferrorama, cheia de orgulho. O maquinista sorriu e se despediu da menina com um aceno de tchau. Em seguida, em meio a estalos e rangidos, a composição voltou a se mover, e logo desapareceu na escuridão. A menina permaneceu na janela, afagando a sua locomotiva e escutando o distante barulho do motor somado ao rangido protestante das rodas dos vagões. Só saiu dali após a última buzina do trem, na periferia da cidade.
                Foi para a cama. Seu coração já estava mais calmo. Abraçada ao seu velho livro, foi adormecendo devagar, lembrando do trem que passara e pensando como gostaria de estar em um deles, um dia.


Daiane Kowaleski Miranda

Passagem do Trem


 
            Sento-me agora na estação abandonada, para aguardar sua chegada. Estou atenta aos ruídos, ansiosa para ouvir sua voz. Olho impaciente para o relógio, várias e várias vezes, como numa tentativa de fazer o tempo andar mais depressa. Em vão. Os minutos se arrastam. O olhar se perde na curva dos trilhos mais adiante.
            Enfim, a buzina distante anuncia sua presença. Meu coração acelera, proporcionalmente à aproximação do trem.
             Não tarda para que eu consiga ouvir o ronco pesado do motor, em batidas rápidas. Os trilhos começam a estalar. Não caibo em mim. Uma coluna de fumaça azulada sobe acima da copa das árvores mais adiante. E se aproxima.
            Eis que finalmente ele chega. O trem desponta na curva, ligeiramente inclinado. O chão vibra. Eu também. Ponho-me em pé num salto. Um a um os vagões vão dando forma ao imenso corpo do trem.
            O retumbar profundo do motor das locomotivas diminui, e a composição desacelera. O farol joga sua luz amarelada nas paredes da velha estação. O trem passa lentamente ao meu lado, e quase posso tocá-lo. Observo-o deslizar devagar, até o outro lado da plataforma. A batida rítmica acelera e o trem volta a ganhar velocidade. A buzina soa novamente, me fazendo estremecer. A primeira locomotiva atinge impetuosamente a rua. A composição serpenteia e se afasta, com seu leve balançar.
            Fico parada na plataforma, sentindo seu cheiro, ouvindo seu ruído decrescente e ansiando pelo seu retorno.

Daiane Kowaleski Miranda