segunda-feira, 20 de junho de 2011

A Cabine Elétrica de Cruz Alta


Pra quem não sabe, o pátio ferroviário de Cruz Alta foi o único no estado a ter AMVs (chaves) elétricos no estado do Rio Grande do Sul. Apesar deste sistema ter sido desativado há muito tempo, sua cabine ainda permanece no pátio. Mesmo depois de ter sido incendiada, vandalizada e saqueada, a cabine mantém sua estrutura  e nos dá uma idéia de como era no passado. 

Aparência externa da cabine atualmente

Pesquisando sobre ela juntamente com amigos do Arquivo Histórico Municipal de Cruz Alta, da ABPF e da ALL, descobrimos características singulares, e um sistema de operação único, chamado bloqueio Bertacin.
Esse sistema foi inaugurado pela E. F. Sorocabana  em 1931 dez cabines no trecho São Paulo-Domingos de Morais,e foi  invenção do Eng. Heitor Bertacin; o invento já havia sido submetido a demorados estudos e experiências, que haviam comprovado sua eficiência e segurança. Consistia em um sistema eletro-mecânico com interligação e intertravamento recíproco de chaves,sinais,cancelas e aparelhos de manobra nas cabines, impedindo o acionamento indevido de qualquer elemento. Todo o conjunto era de projeto e construção inteiramente nacionais. Em janeiro de 1936 o Ministro da Viação recomendou a várias estradas de ferro que adotassem de preferência o bloqueio Bertacin, entre as quais a E.F. Central do Brasil, a E.F. Noroeste do Brasil e a Rede de Viação Cearense.

O bloqueio Bertacin é um conjunto de mecanismo elétrico que bloqueia o trem em determinado percurso, dirigido em harmônica relação, pela cabine do trecho em que ele está. As cabines entram em relação entre si para a passagem de um trecho a outro e este serviço com o de pátios é feito com máxima segurança. O manejo das alavancas para acionar as agulhas, discos, ferrolhos, fechaduras e semáforos é mais ou menos o adotado na Europa e América, ou seja, uma agulha aberta para certo desvio, impede, por meio de quadro de travamento, chamado interlocking que venha a franco um sinal ou disco contrário e bem assim, tendo linha livre para um trem, impede que o cabineiro abra um travessão ou desvio correspondente aquela via. As chaves de ponta são munidas de ferrolho e contratrava impedindo que o cabineiro possa mover a alavanca.por outro lado os próprios freios das rodas da locomotiva impedem e travam as alavancas de per si e automaticamente os mesmos aferrolham as agulhas.

A contratrava por sua vez limita-se a aferrolhoar a chave na posição certa, correspondente a cada sinal de estrada, sendo que cada agulha é protegida por um ou mais discos conforme a manobra a se fazer. As cancelas também são aferrolhoadas automaticamente com campainha para avisar o público sendo que este sistema trabalha automaticamente bem como os faróis. Este conjunto só ficará livre depois da passagem do trem. Afinal é o próprio comboio que por si dá licença ou impede o manejo das chaves conforme o caso. As cabinas pois conjugadas desse modo com o bloco mantém o serviço absolutamente seguro no pátio de manobras garantindo uma perfeita entrada ou saída das estações de qualquer trem.

Heitor Bertacin foi casado com Maria Isaura Ribeiro filha do coronel Diogo Martins Ribeiro (1848-1932). Pelo Decreto 13.128/1943 de 05/08/1943 o presidente Getúlio Vargas autorizou Heitor Bertacin a pesquisar dolomita no município de Prainha, São Paulo.
Depois de analisarmos a cabine, apesar do pouco dela que restou, chegamos à conclusão de que ela fugia ao padrão das outras cabines elétricas do país. Não utilizava contrapesos e contatos eletromecânicos, e sim cabos acionados eletricamente. Suas alavancas se localizavam em uma “mesa”, diferente das alavancas convencionais, no chão. O painel, um dos poucos itens que resistiu ao incêndio e ao vandalismo, nos dá uma idéia do “layout” do pátio no passado. Essa cabine, pelo que consta, data de 1944. 
No momento, estamos pesquisando e tentando encontrar referências e fotos desta cabine para que possamos fazer uma reconstrução da sua aparência original e sistema de operação. 


Daiane Kowaleski na mesa de controles

sábado, 30 de abril de 2011

A Menina e o Trem


Escurecia...
A menina pulava corda com os amigos, quando foi chamada pela mãe. Despediu-se da meninada e correu para o portão de casa. Seus pais moravam em uma vila ferroviária, bem próxima à antiga estação, onde ainda funcionava um pequeno museu mantido pelo seu avô, ex-telegrafista da ferrovia.
                Era hora de jantar. A menina estava inquieta. A partir daquele horário, ela ficava atenta aos ruídos da noite. Esperava.
                Depois da refeição, sentou-se no chão da sala com um livro antigo, de capa carcomida. Começou a folhear. Surgiam figuras em preto e branco de locomotivas a vapor, carros, pontes, rotundas, pilhas de carvão, trabalhadores nas oficinas...
                Os olhos da garotinha brilhavam, e sua imaginação se perdia naquelas páginas amareladas. Lembrou-se das histórias contadas pelo seu avô sobre o trabalho árduo, da construção das estradas de ferro, das imponentes máquinas... Ficava horas e horas na estação, ouvindo-o contar. Havia ganho dele também um pequeno ferrorama, que a distraía por longos períodos em sua própria ferrovia imaginária, transportando seus brinquedos pelo chão do quintal.
                De repente, a menina largou o velho livro e saiu correndo. Havia escutado o som que estava esperando. Uma buzina estridente soou ao longe como um grito rouco.
                Na janela do seu quarto, a garotinha estava atenta. O familiar ruído compassado do motor foi aumentando de intensidade. Logo, surgiu um forte clarão no meio das árvores. Ele estava chegando. O coração da menina teimava em bater mais rápido.
                A buzina agoniada cortou novamente o silêncio da noite. O trem cargueiro adentrava na estação e exibia seus contornos à luz da plataforma. A garotinha ficava maravilhada com aquela imensidão de ferro que agora movia-se lentamente, se exibindo pra ela.
                A composição parou. As duas locomotivas que tracionavam o longo trem resfolegavam e bufavam como grandes corcéis de aço e olhos luzentes, prontos pra prosseguir a jornada.
                Da janela da primeira locomotiva, o maquinista acenou para ela, que retribuiu o aceno e mostrou a pequena locomotiva do seu ferrorama, cheia de orgulho. O maquinista sorriu e se despediu da menina com um aceno de tchau. Em seguida, em meio a estalos e rangidos, a composição voltou a se mover, e logo desapareceu na escuridão. A menina permaneceu na janela, afagando a sua locomotiva e escutando o distante barulho do motor somado ao rangido protestante das rodas dos vagões. Só saiu dali após a última buzina do trem, na periferia da cidade.
                Foi para a cama. Seu coração já estava mais calmo. Abraçada ao seu velho livro, foi adormecendo devagar, lembrando do trem que passara e pensando como gostaria de estar em um deles, um dia.


Daiane Kowaleski Miranda

Passagem do Trem


 
            Sento-me agora na estação abandonada, para aguardar sua chegada. Estou atenta aos ruídos, ansiosa para ouvir sua voz. Olho impaciente para o relógio, várias e várias vezes, como numa tentativa de fazer o tempo andar mais depressa. Em vão. Os minutos se arrastam. O olhar se perde na curva dos trilhos mais adiante.
            Enfim, a buzina distante anuncia sua presença. Meu coração acelera, proporcionalmente à aproximação do trem.
             Não tarda para que eu consiga ouvir o ronco pesado do motor, em batidas rápidas. Os trilhos começam a estalar. Não caibo em mim. Uma coluna de fumaça azulada sobe acima da copa das árvores mais adiante. E se aproxima.
            Eis que finalmente ele chega. O trem desponta na curva, ligeiramente inclinado. O chão vibra. Eu também. Ponho-me em pé num salto. Um a um os vagões vão dando forma ao imenso corpo do trem.
            O retumbar profundo do motor das locomotivas diminui, e a composição desacelera. O farol joga sua luz amarelada nas paredes da velha estação. O trem passa lentamente ao meu lado, e quase posso tocá-lo. Observo-o deslizar devagar, até o outro lado da plataforma. A batida rítmica acelera e o trem volta a ganhar velocidade. A buzina soa novamente, me fazendo estremecer. A primeira locomotiva atinge impetuosamente a rua. A composição serpenteia e se afasta, com seu leve balançar.
            Fico parada na plataforma, sentindo seu cheiro, ouvindo seu ruído decrescente e ansiando pelo seu retorno.

Daiane Kowaleski Miranda

A Locomotiva a Diesel


            A grande locomotiva a diesel aguardava licença frente a uma enorme composição cargueira. Seu tamanho descomunal e porte imponente sempre chamam a atenção por onde ela passa e seus maquinistas sentem muito orgulho em seu posto de comando.
            Enquanto aguardavam para continuar viagem, várias pessoas vieram para tirar fotos ou simplesmente olhar o trem. Um pequeno grupo se formou ao redor da máquina.
            A locomotiva, feliz pelo assédio e curiosidade das pessoas, roncava seu poderoso motor mais alto. O maquinista até acionou a buzina para alegria dos presentes.
            Depois que o movimento de curiosos cessou, o motor da máquina foi desligado e ela passou a estudar o lugar.
            Um tanto afastada, estava a antiga estação da cidade. Praticamente em ruínas, estava tomada pelo matagal. Junto à sua plataforma, dois carros de aço carbono e uma velha locomotiva a vapor agonizavam sob a ação cruel do tempo e o abandono do homem.
            Condoída, a máquina a diesel analisou aquela situação deplorável. A velha locomotiva estava enferrujada e toda cortada. Havia sido tão saqueada que seu tênder já não existia mais. Dos carros, só restava a carcaça corroída e resquícios da pintura azul e branca. Da estação, restaram tão somente as paredes, vagas lembranças dos tempos áureos da ferrovia.
            A locomotiva a diesel agora contemplava aquela que outrora era soberana absoluta sobre os trilhos. As duas máquinas se encararam por um breve momento.
            A moderna locomotiva foi tomada por um temor respeitoso, frente àquela que fora a sua antecessora. Com talvez o triplo do tamanho da vaporosa, era tão jovem que nada sabia sobre o passado ferroviário. O pouco que sabia, vinha de histórias contadas na sua cabine, ou à sua sombra em dias como hoje, onde esperava para seguir viagem.
            Sentiu-se uma criança. Apesar de toda a sua potência e tecnologia, viu-se tão frágil e tão pequena, frente àquela vaporeira que, apesar de seu estado deplorável de descaso e destruição, ainda mantinha sua majestade, da qual havia sido há tanto tempo destituída.
            Nunca vira uma Maria Fumaça funcionando, constatou. Nem carros como aqueles rodando. Fora construída muito depois da queda do transporte ferroviário de passageiros. Começou a se perguntar porquê... Será que um dia ela, hoje tão aclamada, teria fim igual ao daquela locomotiva? Seria desprezada e deixada para morrer em uma dessas filas de morte que já tinha ouvido falar?
            A grande diesel-elétrica entristeceu. Começou a perceber a face sombria da ferrovia. Baixou os olhos e começou a fitar os trilhos. Próximo a eles, sob a sombra de uma pequena árvore, havia um senhor sentado em um banco de pedra, com os olhos voltados para a velha estação.
            Curvado sob o peso do tempo, o ancião segurava a bengala com firmeza, perdido em seus pensamentos. Estava de costas para a locomotiva a diesel.
            Quando o senhor voltou-lhe a face, a locomotiva pôde ver seus olhos. Estavam marejados, e ela percebeu que carregavam a mesma tristeza que ela vira na velha vaporosa. Por um momento, ele olhou para a locomotiva a diesel. A dor existente naquele olhar cortou-lhe o sentimento. Ela choraria, se tivesse tal capacidade.
            Novamente a máquina começou a encarar os trilhos. A dor e a amargura feriram-lhe mais que fogo. Compreendeu a cumplicidade existente entre o senhor, a locomotiva a vapor e seus carros. Foram separados pelo descaso e pela modernidade. Será que um dia seu maquinista choraria por ela carcomida pela ferrugem e largada em um cemitério de vagões?
            Nesse momento, chegou a licença para partir. Seu motor foi novamente ligado, mas ele já não roncava tão alto. A máquina já não tinha o mesmo entusiasmo de antes. A revolta agora circulava juntamente com o diesel em suas entranhas. Havia sentido o gosto amargo da negligência e ele não seria esquecido tão cedo.
            Soou a buzina estridente. Estavam partindo. Lançou um último olhar para a velha locomotiva, expressando toda sua condolência. A vaporosa aquiesceu. O ancião contemplou rapidamente sua passagem, com os olhos ainda vermelhos e úmidos. Como ela queria que aquele homem visse sua tristeza, embora isso não devolveria a ele tudo o que lhe fora tirado. Ela não podia fazer nada.




Daiane Kowaleski Miranda, “Daiane Fumaça”

A Maria Fumaça


Já convivo com os trens há alguns anos. Quase que diariamente ouço sua melodiosa canção de ferro e presencio sua impertinência ao atravessar as ruas movimentadas. Aqui, os trens cargueiros tracionados por locomotivas a diesel já fazem parte do cotidiano da cidade.
            Nunca havia visto de perto uma locomotiva a vapor funcionando. Vi somente através de filmes, documentários, novelas... E mesmo assim já achava uma maravilha da engenhosidade humana.
            Na minha primeira viagem a São Paulo, tive a oportunidade de ver uma Maria Fumaça em funcionamento pela primeira vez. E como eu queria que aquele momento não acabasse mais.
            Cheguei pela manhã na estação e, ao longe, a espessa coluna de fumaça indicava a presença da locomotiva. Mesmo distante, já conseguia ouvir sua respiração chiada.
            E sem demora ela veio. Surgiu do lenheiro de forma quase sobrenatural, precedida pela névoa formada pelo vapor expelido dos cilindros. O chiado rouco da exaustão do vapor aumentou de intensidade. Ela veio devagar, balançando suavemente.
            Ao chegar na estação, apitou vigorosamente. Seu apito parecia um grito, lamentoso e prolongado. O vapor e a fumaça envolviam-na como um manto. Tive um calafrio. A locomotiva parecia ter saído de outro mundo, parecia transcendental. Sua presença era imponente, e imprimia um certo respeito. Começou a se deslocar mais lentamente. Suas braçagens moviam-se de forma sincronizada, numa coreografia perfeita. Parecia ter uma grande leveza, tal o modo como deslizava sobre os trilhos.
            Todos nós que aguardávamos na estação paramos para apreciar a passagem daquela máquina maravilhosa com alma de fogo e ficamos boquiabertos com a cena presenciada. É praticamente impossível não ser tocado por tal visão. Não tem como ficar inerte diante do espetáculo do funcionamento de uma Maria Fumaça. A gente simplesmente é invadido por uma sensação estranha, parecida com uma forte saudade...Engraçado sentir saudade de uma época que nem vivenciei...
            Senti saudades de locomotivas como essa, que nunca tinha visto rodar até aquele momento. Senti falta de estações, pelas quais nunca passei. Senti saudades do som do sino, avisando a partida da composição, do apito do chefe de trem, seguido do apito choroso da locomotiva. Senti saudade do cheiro úmido do vapor e da lenha, do ranger dos metais, do estalar dos dormentes, do som resfolegante dos cilindros...
            Senti falta da música composta pelos rodeiros e trilhos, do balançar dos carros, das partidas e chegadas, dos acenos nas janelas, do movimento nas plataformas...
            Perdemos uma época áurea, mas nesse dia em que fiquei frente a frente com essa locomotiva a vapor, percebi que nem tudo está perdido, e que nem todo material rodante antigo está morto. Pelo contrário. A vontade e perseverança de poucos fez uma enorme diferença e manteve acesa a chama da preservação ferroviária, praticamente extinta do nosso país rodoviarista.

Daiane Kowaleski Miranda, “Daiane Fumaça”